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15 de agosto de 2013

Todos os teus gostos foram escolhidos para ti


"Eu gosto de cinema"
"Eu adoro uma cervejinha no final do expediente"
"Eu odeio meu cabelo ruim, queria tanto ter cabelo liso"
"Eu odeio Matemática!"

O que seria do azul se todo mundo gostasse só do roxo? Uns gostam de azul, outros de roxo. No final tudo é justo. Mas será que tu realmente gostas de novela? ou de refrigerante com gelo e limão?

Tudo que vemos nos influencia. O comercial de televisão, a marca de cigarros que o protagonista fuma no último filme do Almodôvar, aquela imagem engraçada que aparece no feed do Facebook.

Outras pessoas nos influenciam. Se tu não vês Zorra Total, tua tia vê. Se tu não lês a Veja, teu professor lê. Talvez se não fosse aquele comentário que tu ouviste sem querer na fila do banco, hoje tu não estarias morando onde tu moras, ou usando a roupa que estas usando.

Claro que não é tudo preto e branco, temos nossa genética, podemos dizer até que temos escolha. Mas pensa que aquilo que te é mais importante, aquilo que tu usas para te definir, pode não ser mais do que um acidente, ou pior ainda: fruto de uma trama maligna das grandes corporações. Que abusaram de seu grande capital para transformar teu ambiente: pagar o comercial de televisão, contratar formadores de opinião, patrocinar o artista. Tudo isso para te fazer gostar de Fanta uva com gelo.

Corporação maligna ou não, teus gostos foram incutidos pelos outros, seja lá quem for. Tu gostas de carro, ou daquela música das Spice Girls, ou de ir na academia, tudo porque alguém te influenciou.

Tu tens que ter faculdade, ou tu quer ter o carro, a casa, a tatuagem, a bolsa, o óculos, não por que tu precisas, ou porque isso realmente é algo que vai enriquecer a tua vida, mas simplesmente porque assim é. Ter uma casa é uma baita investimento, ter o carro vai me permitir ir onde eu quero. Eu tenho dinheiro sobrando, então posso comprar essa bolsa. Eu não sou bom desenhista, meus desenhos são horríveis. Tudo isso parece vir do fundo da tua alma, mas é simples eco da Ana Maria Braga, do Steve Jobs, do Jorge Luis Borges.

É impossível saber se gostamos realmente de alguma coisa ou se essa coisa nos foi incutida. É bom para a sociedade que tu compres teu carrinho, tuas roupas de grife, que tu te drogues, que tu engordes. Há um claro incentivo para que estes gostos estejam sendo empurrados em nossas goelas.

Não uses teus gostos como desculpa, eles não são teus.

12 de maio de 2013

Cristina, a garota que não se importa com o que os outros pensam - Parte I




Cristina, ela gostava de dizer, não se importava com o que outros pensam. Não sabia, por certo, quando deixou de se importar. Sabia, contudo, que não era intrínseco o seu desprezo pelas opiniões alheias.

Era uma menina tímida e estudiosa no colégio. Gostava muito de ler e frequentemente matava as aulas de educação física para ler sozinha, escondida. Muitas meninas se traumatizam por se desenvolverem mais tarde que suas pares. Cristina não se sentia assim, amadurecia lentamente, tomando seu tempo. Apesar de um pouco esquisita como toda adolescente, já mostrava grande beleza descuidada.

De fato, não dava bola para aparência. Talvez os hormônios não tivessem o efeito necessário em seu sistema, mas naquele ponto não demonstrava grande interesse pelo sexo oposto. Um pouco deslocada nos âmbitos físico e de interesses, Cristina não formou grandes amizades no ensino médio. Não se importava muito com solidão e até sentia prazer em experienciar um completo silêncio e desligamento do resto do mundo. Algo que não é comum hoje em dia.

Tudo mudou quando o mundo a notou bela. A corrente de atenção despertada pela recém desperta beleza, somado com o ar de mistério e de pureza que lhe traziam fama na escola, lhe confundiu e atordoou. Teve que aprender na marra o jogo social e as regras mudas que regem a hierarquia feminina. Como toda jovem bela, ignorava os benefícios e os privilégios que a beleza lhe trazia.

O final da adolescência é o momento em que definimos nosso caráter e nossos valores. Meio que atirada no meio de um transporte em movimento, ela teve que improvisar uma personalidade. Cristina definiu-se então pelo seu diferencial em relação a seus pares. Todo mundo se acha especial. Ela se definiu completamente como alguém sem igual. Incompreendida, Cristina não se identificava com ninguém que conhecia. Via algumas características suas nas heroínas dos livros ou filmes que assistia. Mas ainda assim achava que não pertencia ao nosso mundo.

Não via televisão e se orgulhava disso. Deu desejo de ser diferente controlava sua vida. Se alguém gostasse de algo, seria impossível para ela gostar daquela coisa. Assim seus gostos se reduziam a peças obscuras e "bandas que ninguém conhece". Seu modo de se vestir e pensar começaram a ser a pura antítese do que estava na moda. Assim se tornou uma mera escrava da contrariedade.

Falava frases polêmicas somente para polemizar. Agia de maneira irresponsável somente para se definir. Beijava e se deitava porque podia. Seu maior medo era que descobrissem como sua personalidade era rasa. Que embaixo da roupa que beirava o ridículo, existia só uma menina tímida que não gostava de jogar vôlei.

Ela não era burra, se deu conta de seu distúrbio. Porém era tarde demais. O que a levou a um novo estado de consciência: sabia que estava presa na fuga do cliché. A paradoxalidade da sua situação era tão confusa quanto tudo que é trivial parece a uma adolescente. Era o pior sentimento de todos, o de se sentir aprisionada depois se sentir infinitamente livre. Sentia que aqueles que nasciam no cativeiro acabavam por se acostumar. Mas para o pássaro que pensava que tinha voado mais alto do que todos os outros era o pior do sete infernos acabar em uma gaiola.

19 de fevereiro de 2013

Distúrbio Cético


Todo mundo tem que acreditar em alguma coisa.

Ser cético não é normal. Algum pastor psicologo e dono de rede de televisão poderia classificá-lo como um distúrbio comportamental. Ceticismo é marcado por uma marcada condescendência para com leitores de horóscopo, frequentadores de missa e pessoas que adicionam consoantes em seus nomes para equilibrar o profissional e o emocional. Céticos são delirantes, acreditam que somente se as outras pessoas aprendessem um ou outro fato sobre a realidade -- essa tão preciosa realidade --, então todo mundo seria cético. O cético tende a fazer comentários velados, as vezes somente para eles mesmos. Tendem a sorrir afetadamente e a rirem sozinhos.


Tem traços bipolares. Sente-se as vezes superior, que tem todos os mistérios entre o céu e a terra entendidos e as vezes deprimido, com o sentimento que nunca vai entender a humanidade, que está sozinho no mundo. Se sente só mesmo na companhia de outros.


Ao cético falta empatia. Passa noites acordado se perguntando porque alguém dá dez por cento de tudo que tem para uma instituição corrupta. Por que pessoas se mutilam e a outros em nome da algo não razoável. Por que pessoas pagam por frascos de água e álcool sem nenhum traço do antígeno e sem nenhum estudo que comprove sua eficácia.

"Estudos" são o único deus do cético. Começa várias frases com "estudos comprovam". Em geral não compreende a definição de ciência. A bíblia do cético não é canônica, ele guarda na memória o resultado resumido (e mal interpretado) de vários artigos científicos que leu em revistas como Veja, Época, Carta Capital. Nunca leu propriamente os artigos que cita. Compartilha imagens astronômicas do I F*ing love science. Tem decoradas várias piadinhas prontas sobre religião.

E o tratamento? infelizmente a ciência ainda não encontrou a cura para tal distúrbio. Drogas podem atenuar seu efeito: viajar para a Amazônia e ver a Virgem Maria com certeza pode balançar suas convicções. Mais conhecimento também é um tratamento. Quanto mais a gente sabe, mais dúvidas temos, mas incertezas acumulamos.

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13 de janeiro de 2013

Três Contos Curtos Sobre o Amor e os Coletivos


1. Impressões
As ranhuras das impressões digitais de Lucas tinham a quase probabilisticamente impossível estrutura que encaixava perfeitamente com as de Mariana. Seus dedos se tocaram uma vez quando Mariana dava o troco para Lucas. Na hora tiveram uma sensação que nenhum dos dois pôde descrever. Lucas desceu com pressa na próxima parada. Nunca mais se tocaram.

2. Paz
Era um dia muito quente, hora do rush. O ônibus estava lotado e o transito, parado. Aparentemente um acidente tinha acontecido há algumas centenas de metros a frente. Alguns iam para o trabalho, a maioria voltava para casa. Com a impaciência esperada depois de um dia de trabalho estressante, quente e longo, os passageiros mostravam visivelmente sinais de cansaço. Muita gente de pé, apertada, muita gente suada. O ar da rua e o do ônibus pareciam se digladiar, assim ficavam cada um em seu espaço.

Em uma das cadeiras estava sentado um homem bem vestido e alto. Cabelos cheios de gel, penteados para trás e a barba bem feita. Seu terno parecia ter sido cortado sob medida. Seus sapatos brilhavam mais que o asfalto escaldante lá de fora. Gotas de suor escorriam de sua testa e de suas mãos.

Em seu colo havia uma pasta, dessas que se põe dinheiro em filmes. O homem abriu a pasta lentamente, tirando uma carteira de cigarros. Retirou um e o pôs na boca. O clima no ar repentinamente se transformou. Atônitos, os passageiros pareciam estar vendo uma cena do apocalipse. Talvez um assalto teria causado menos consternação.

O homem de terno então acendeu o cigarro. Comentários começaram a ser ouvidos no, até então silencioso, ônibus. "O senhor não pode fumar aqui dentro" -- um homem corpulento que estava a seu lado protestou. A senhora religiosa do outro lado do ônibus comentou que aquele homem só podia estar com algum encosto. Uma jovem alta e magra tapou o nariz, preocupada com os perigos de ser um fumante passivo.

O cobrador se levantou consternado, mandando o engravatado apagar aquele cigarro, que aquilo incomodava os outros passageiros. Que era proibido. Que ele ira ser autuado.

Os jovens no fundo do ônibus começaram a gritar. Uma velha, que levava um terço na bolsa, começou a rezar. O homem gordo começou a ficar vermelho.

O motorista então se irrita e abre a porta. Mesmo que o ônibus esteja no meio do engarrafamento, e que ele possa ser multado por isso, grita que se o homem não apagar aquele cigarro, terá que sair do ônibus.

O homem de terno calmamente fecha sua pasta, levanta-se e desce do coletivo. Caminha entre os carros tranquilamente, apertando seus olhos e olhando para o céu.

Quarenta e cinco minutos de caminhada, na sublime paz dos homens de bem.

3. A Marca Feia
Ainda que dissesse que já tinha o esquecido -- e que até mesmo o tenha postado no Facebook --, sempre que passava por aquela rua, lembrava do dia em que ali sentaram juntos na sarjeta. 

Ela queria que houvesse um corretivo líquido para o cérebro. Mas as vezes o risco é melhor do que a marca feia do Errorex. Talvez seja melhor um caderno sujo que um vazio.

10 de janeiro de 2013

O inferno são os outros


Todo mundo filosofa. Seja na mesa do bar, ou no banco do ônibus. Filosofia pode ser feita em grupos de dez, ou sozinho no elevador. Não precisa ter diploma, nem certificado. A maioria das pessoas filosofa e nem percebe. Também pode ser feito em qualquer idade. Eu comecei a filosofar quando tinha cinco anos. A primeira questão que ocupava minha mente ainda não totalmente desenvolvida era:
Por que eu sou eu e não outro? como seria ser outro?
A pouco tempo eu aprendi que as crianças bem novas não tem a noção de que seu cérebro é separado dos outros. A criança não entende que o que ela sabe nem todos sabem. Vi um experimento no qual uma menina é deixada pela mãe sozinha em uma sala. Nesse meio tempo ela esconde uma boneca em uma gaveta. Quando sua mãe volta, a menina fica surpresa de descobrir que a mãe não sabe onde está a boneca. Como ela não sabe onde está a boneca? está dentro da gaveta. Para a menina, tudo que ela sabe, a mãe também sabe.

Lá pelos quatro anos de idade, finalmente começamos a entender que existem outros. Começamos a criar a "teoria da mente". Modelamos o comportamento de outras pessoas tendo em vista que não têm os mesmos gostos e conhecimentos que os nossos.

Porém ainda fica a curiosidade de saber como é ser outra pessoa. Talvez essa curiosidade ajude na hora de modelar o comportamento dos outros. Por isso biografias são tão populares. Queríamos estar na pele de outrem, saber como é sentir outras experiências, outra realidade.

Reality shows são populares também por esse motivo. Somos voyeurs naturais, queremos saber os verdadeiros motivos, a verdadeira personalidade de todos.

E enquanto criança, sempre me imaginava como outro. Imaginava acordar em outra cama, estar em outro uniforme. O que influenciou profundamente a maneira como eu vejo o mundo. Tenho uma dificuldade muito grande de apontar culpados, de condenar.

"Quero ver se fosse com a tua filha". Para mim as respostas não são simples, não acredito no bem e no mal. No Certo e no Errado (com letras maiúsculas). Sempre existe uma situação agravante, um desbalanceamento químico, uma coincidência indesejada.

E isso se estende para nós mesmos: olhamos para o passado e nos julgamos. Somos os piores juízes e executores da nossa própria sorte. Mesmo que tenhamos mais conhecimento do que qualquer um para fazer tal julgamento, somos duríssimos na pena.

Algo muito mais válido que Moralidade, que é fossilizada e morta, é compaixão. Eu prefiro mil vezes alguém que se põe no lugar do outro, do que alguém com aquele forte código de honra cravado em pedra. E teríamos uma sociedade muito mais feliz se antes de condenarmos, tentarmos entender o nosso amigo ser humano. E mais que tudo: tentarmos entendermos nós mesmos. Conhece-te a ti mesmo.

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