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2 de dezembro de 2014

O Doce Veneno do Caranguejo

Era aquele dia cinzento e ventoso em que só se vai na praia porque já se cansou da mesa de baralho. Roger estava sentado sobre suas havaianas contemplando comprar um milho verde: decidiu caminhar.

Quanto mais caminhava, mais feias eram as praias e mais o vento soprava. Começou a pensar em todo o trabalho que teria para fazer quando voltasse para capital: só a sua caixa de entrada demoraria duas manhãs para ser processada. Lembrou do porteiro do prédio em que trabalhava que sempre comentava com ele sobre futebol. Roger não entendia nada de futebol, no colégio só jogava vôlei e seus pais só viam ginástica artística na TV. Contemplava agora se demitir: decidiu comprar o milho.

Ao chegar no quiosque se deparou com Laura. Não a via há um ano. Saíram algumas vezes e de vez em quando trocavam mensagens no WhatsApp. Só depois de alguns minutos se atualizando um da vida do outro que Roger percebeu algo curioso com a menina: suas pernas eram as de um caranguejo.

Confuso no início, não sabia se trazia aquele fato a tona ou não. Sorte que quem estava falando era ela; isso lhe deu tempo de pensar. Será que era uma doença? se fosse seria chato comentar. Mas também como ficar calado? tal transformação não ocorre todo dia. Resolveu dar uma indireta:

-- E o que aconteceu contigo?

Ela entendeu. Disse que era "por causa do namorado" e complementou com "sabe como é". Depois apertou seus lábios formando uma expressão facial que Roger não sabia como interpretar.

Como assim por causa do namorado? será que ela estava namorando um caranguejo? e que a estava obrigando a se transformar lentamente em sua espécie? ou será que o namorado tinha um fetiche por crustáceos? nunca tinha ouvido nada parecido. Além do mais, Laura, formada em direito, nunca iria se sujeitar desse jeito a um cara qualquer com um fetiche bizarro.

O milho de Laura ficou pronto e ela foi embora em direção as dunas de areia. Roger ficou ali pensando se pediria manteiga ou só sal.

Roger ficou pensando que nenhuma mulher fez nada assim por ele. Nem mesmo um corte de cabelo. Porque será que alguns tinham sucesso no amor enquanto ele só se dava mal? a verdade é que ele também não faria nada assim por ninguém. Nem passava por sua cabeça decair na escala evolucionária só para satisfazer alguém que não conhecia nem mesmo há um ano. Começou a achar Laura volúvel.

Naquela noite os dois pensaram um no outro. Roger em seu colchão na casa da praia do seu colega de trabalho e Laura nas dunas de areia do Quintão.

4 de outubro de 2014

A Ana-mariazação da Sociedade


Dizem que Monalisa tinha sobrancelhas e que era séria. Eu a imagino através dos séculos, vendo suas cores desaparecem, suas sobrancelhas sumirem; imagino-a vendo tudo isso e sorrindo. O que fazer? talvez o desaparecimento da beleza também seja belo. 

É o destino da mulher se conscientizar de sua beleza já em seu declínio. A beleza da mulher é um poema escrito na areia. Eu imagino o pavor da, antes bela, mulher que se olha no espelho e vê sua mãe. Aquilo que lhe dá razão de existir agora desaparece em sua frente, sem que nada possa ser feito.

Com sorte o ser humano é o ser do hábito, e dado o longo tempo para se acostumar com o novo estado-das-coisas, a mulher se acostumava com a beleza perdida. Como Monalisa, ela sorria. Mas criamos maquiagens e as revistas femininas: não mais era possível se contentar. A mulher não tinha mais o direito de ficar velha. É a ana-mariazação da sociedade.

Consumismo. Quanto mais passam-se os anos, mais maquiagens, mais Cosmopolitans. Até o momento súbito da cajadada de Cronos. 

Beleza é poder. Ninguém obriga ninguém a usar maquiagem (talvez o dono do circo obrigue o palhaço, mas esse tem o direito de virar trapezista ou limpar a jaula do elefante). Mas não usar significa a perda do poder. Alguns apontam a obrigatoriedade da maquiagem como indício do machismo na sociedade, mas pelo menos a mulher tem a alternativa: tudo que estende a aparência de juventude do homem é ridicularizado.

A tecnologia estende nossas capacidades, podemos pular mais alto, viajar mais rápido e estender a juventude até estágios ana-mariescos. Mas ainda não estendemos nossas emoções para lidar com essas novas capacidades. Estamos fadados ao momento fatídico: olhar-se no espelho e ver Louro José.

8 de março de 2014

Promoção Exclusiva para o Dia Internacional da Mulher

1. Consumismo
O consumismo abocanha tudo. Nada escapa.

Mulheres morreram queimadas numa fábrica? Que tal esse desconto nesse forno? Que tal comprar flores ou bombons para suas colegas de trabalho? "Tu acredita que ele não me deu nada no dia internacional da mulher?".

No momento em que um movimento é comoditizado ele perde seu valor. Se tu estás comprando uma camisa de "eu sou feminista", então tu és só mais um funcionário; e poderia pelo menos ser pago por isso.

O dia dos namorados pelo menos é sincero.

2. Ironia
Como reclamar do sistema de dentro do sistema?

Minha própria linguagem é a linguagem do consumismo. Minha indignação tem cotação no mercado. O paradoxo é um paradoxo.

Comprar é a última forma de protesto. Ou não comprar, no caso. Se tu não concordas com a opinião do dono do KFC, então simplesmente não compres dele. A revolução no capitalismo é tipo o voto, não serve para nada.

3. Esperança
Não há mais quase nada a se fazer sem consumir. Não há bancos no centro da cidade. Eu e meus amigos somos interrompidos em nossa conversa no parque. É uma moça simpática vendendo trufas.

"Tudo bem, ela só está tentando pagar a prestação do carro."

É para isso que as mulheres foram queimadas. Para que tu comprasses o forno em dez suaves prestações.