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25 de setembro de 2012

Virgem


Todo dia ela acordava. Calçava os chinelos, ia ao banheiro. Bocejava. Se olhava no espelho, coçava a cabeça. Tomava banho, se vestia. Tomava café, olhava a janela. Tinha uma vista para uma bela parede com vários padrões interessantes formados pela infiltração.

Toda santa manhã ela fazia o mesmo. Fazia mais de um ano que não tinha um contato íntimo com outro ser humano. A verdade é que não tinha vontade. Não podia nem ouvir alguém falando ou principalmente rindo. Trabalhava com muitos papéis, não precisava ver quase ninguém. Podia ficar o dia todo na sua sala com suas paredes brancas e lisas. Tinha família no interior, mas não os via há meses.

Quando chegava em casa, à noite, não tinha muito o que fazer. Não tinha TV. Fazia castelos de cartas, jogava paciência, pensava. Começou a pensar que estava sozinha no mundo, que se ela morresse ali naquele apartamento, passariam meses até que descobrissem seu corpo, no meio de várias xícaras de chá, um jogo de paciência não acabado e uma pilha de roupas sujas. Só lavava uma xícara de chá quando não haviam mais xícaras, e ela tinha muitas xícaras.

Um dia, deitada no chão -- um de seus passa-tempos preferidos -- começou a pensar que deveria fazer algo para agitar um pouco a sua vida, viajar talvez. Quando era mais nova tinha o sonho de ser veterinária, mas acabou fazendo turismo. Não praticava.

Fazer algo exigia força de vontade, algo que ela não possuía. Deitada no chão frio, com a coluna bem reta, só pensava como era impossível mesmo lavar aquelas xícaras (com as quais ela tinha escrito "FOME" no meio da sala). Merda, era mesmo impossível se sentar no sofá. Ela sentia que mesmo seu corpo estava desistindo, que um dia desses o seu coração ia decidir parar de bater, já que o resto do corpo não ia se importar mesmo.

Há meses não sorria, sentia que seu rosto começara a se adaptar à nova situação. Um dia seu patrão fez uma pergunta que demorou mais de dez segundos para ser respondida. Seu trabalho começava a ser feito porcamente também. Não se importava se perdesse o emprego, não gostava de sair de casa mesmo. Tinha bastante dinheiro guardado, não gastava com nada.

Suas roupas estavam ficando gastas, seu cabelo já estava muito longo e mal cuidado. Começou a ter medo de sair de casa, medo que falassem com ela, começou a sair mais cedo para tomar o ônibus mais vazio. Um dia seu patrão lhe perguntou algo e ela não respondeu. Ele voltou a fazer a pergunta, agora mais alto. Nada.

O patrão caminhou até sua mesa, já claramente irritado. Pegou no seu braço e perguntou se ela não o tinha ouvido. Nesse momento ela enlouqueceu. Aquelas mãos gordas e suadas tocando seu braço pareciam queimá-lo. Uma onda de ódio pareceu se transferir da ponta dos dedos do patrão até a nuca daquela mulher. Abriu a boca e deu um grito mudo: não tinha mais voz, não sabia mais quem ela era. Saiu correndo de sua sala, deixando o patrão atônito e desorientado.

Correu no meio das ruas, sem direção, não lembrava onde morava. Batia em algumas pessoas (as ruas estavam lotadas), seu horror aumentava. Correu por uma hora e, sem saber como, estava em seu apartamento.

Olhou confusa, as paredes tinham mudado de cor, as xícaras tinham sumido do chão. Só o que estava igual era a pilha de roupas. Ela se atirou no meio das roupas, as abraçou como se fosse um bebê. Dormiu.

Deve ter dormindo por muitos dias. Mas finalmente se levantou triunfante do meio das roupas sujas, com uma energia que nunca teve antes. Olhou pela janela e a visão a fez se ajoelhar e chorar: a infiltração na parede tinha o forma do rosto da Virgem Maria.

16 de setembro de 2012

O casal ameba


O louvo-a-Deus tem sua cabeça comida durante a procriação. O macho da girafa bebe a urina da fêmea para verificar se ela está apta a procriar. A natureza é cheia dessas curiosas práticas. Nós humanos não somos diferentes, só que as nossas práticas são um pouco mais complexas. Mulheres passam horas se disfarçando arrumando, homens passam horas na academia. Nem vou comentar sobre os rituais de acasalamento, livros e mais livros foram escritos sobre tal.

Duas pessoas se conhecem. Sem seguir nenhum guia, suas químicas internas mudam. Um olhar, gestos, frases, uma sequência de causa e consequência controlada pela cultura e genética que dificilmente será compreendida totalmente toma efeito. Um telefonema na hora errada, uma frase com entonação incorreta, podem quebrar a cadeia. Mas algumas cadeias persistem.

Aos poucos a cadeia fica mais forte, fortalecida pelo hábito. Tudo fica menos bio e mais lógico. As regras agora são mais culturais que químicas. Expectativas são criadas, e quebradas, e mudadas. Aos poucos, uma entidade toma forma. Essa entidade, que não está nem nele nem nela, tem vida própria, os controla.

A entidade vai endurecendo, ficando mais forte contra o exterior. Dá origem a uma micro-cultura, semi-independente da Cultura global. Os indivíduos envolvidos, então, ficam cada vez menos conscientes dessa entidade. Aos poucos o hábito vai dominando, as expectativas crescem, as raízes entram cada vez mais fundo nas almas dos hospedeiros.

Então um dia os anti-corpos individualistas se manifestam. A vida acontece. O hospedeiro vê uma saída, de repente o contrato não está mais vantajoso. Então ele se desprende, ele se livra do parasita. Mas ele não morre sem deixar sequelas. As vezes mortais.

Outro olhar, outros gestos, outra sequência de causa e consequência, outro parasita. As defesas naturais agora, no entanto, são mais fortes, os benefícios e malefícios, portanto, mais fracos.

3 de setembro de 2012

Sozinho na multidão


O mundo é do indivíduo. O triunfo máximo da iluminação é o fim do coletivo, da tribo, do grupo. Vivemos, dizem, na época mais pacífica e próspera da história da humanidade. Porém cresce um problema endêmico e silencioso. Um que não altera índices, que não passa por métricas. O mundo moderno, dos números, da ciência, não enxerga o que não é taxa, o que não cabe na célula do Excel.

O homem é cada vez mais urbano, mais apertado em apartamentos pequenos, mais amassado em transportes públicos ou preso no tráfego; cada vez mais sozinho. E não é coincidência: a solidão é propagada devido a seu subproduto: o consumismo.

O homem só só consome. Quando entre amigos, é feliz, é criativo, é ativo. Quando sozinho é reativo, é mesquinho, é egoísta. Compra porque está preso dentro de si. Passa a tarde no shopping procurando um sapato, tarde consumindo e sendo consumido. Tentando preencher o vazio da solidão.

A igreja se comercializou, o espírito fica entre a roupa nova e a nova TV. Vai para a Igreja para pedir mais dinheiro, paga o imposto para Deus. Velas para comprar. Indulgências, vagas no céu. Decalques no carro, CDs e DVDs. As religiões que se dizem contra o consumismo são as mais hipócritas: a aula de Yoga, o incenso, a calça trançada, a droga, tudo é consumo. Meditar agora é consumir.

A diversão é o consumo. Agora a diversão é na cadeira, na frente do computador, consumido mídia, adicionando fotos, colecionando "amigos", ganhando níveis, juntando itens, consultando preços.

Amanhã eu não consumo, vou sentar com meu amigo, conversar sobre conversas, sem comprar o maldito refrigerante.